Eu trabalho em uma ONG, atendemos 70 crianças e 65 adolescentes que vivem em situação de vulnerabilidade social.
Todos os dias lido com diferentes perfis de crianças, vindas de diferentes situações familiares, criações e educações. Entre essas crianças, temos o Bruno, com 8 anos de idade. Bruno é um menino magricelinho e muito miúdo . Sua mãe tem muitas dificuldades financeiras, pois não tem um companheiro que a ajude, não consegue trabalho e tem 2 filhos pequenos pra cuidar, sobrevivendo apenas de bolsa família e ajudas que alguém dá. Mas ele é uma criança difícil, não tem amigos, já sofreu vários tipos de abusos e vez ou outra é bastante agressivo e desobediente. Eu mesma já me estressei algumas vezes com ele.
Todos os meses fazemos festa de aniversario com os aniversariantes daquele mês, e chamamos suas famílias pra comemorarem com eles. Na última festa tínhamos 29 aniversariantes, entre elas o Bruno. O Bruno ficou tão feliz com a sua festa, mas tão feliz que eu cheguei a me perguntar quando foi a última vez que foi comemorado o aniversário dele.
Mas ele não queria as outras crianças lá, ele queria que tivesse apenas a mãe e o irmão e os funcionários da ong na festa, e tivemos que conversar com ele pra que ele entendesse que a festa era de todos. Ele gosta muito de ficar com a gente na ong, gosta das atividades que fazemos, das comidas que oferecemos e da atenção que damos a ele.
Quando conhecemos o histórico de alguém, é mais fácil entender certos comportamentos. “Ao ver as multidões, Jesus sentiu grande compaixão pelas pessoas, pois que estavam aflitas e desamparadas como ovelhas que não têm pastor.” Mateus 9:36.
Eu, tão imperfeita, as vezes até reclamando de alguns hábitos do pequeno Bruno que eu me incomodavam, sou surpreendida ao perceber que ele sente-se bem perto de nós. E meu coração se enche de compaixão. Por ele, pela mãe que num mar de dificuldades e traumas, faz o que pode, na medida do seu conhecimento, pelos seus filhos e por toda a trágica situação que eles tem vivido.
Há algum tempo eu conversei com os adolescentes sobre sexualidade, ensinando coisas básicas sobre o desenvolvimento humano, corpo do homem e da mulher e mudanças que o corpo sofre desde que somos crianças até nos tornarmos adultos. Entre algumas meninas tinha a Giovanna, que não sabia nada sobre menstruação, higiene da mulher e coisas do tipo. Semanas se passaram até que Giovanna menstruou e veio me procurar aflita, pois não sabia o que fazer, não tinha absorvente e sentia muita dor, não sabendo que estava sentindo cólica. A mãe da Giovanna tem 6 filhos, o marido saiu de casa e não paga pensão, ela é diarista, sai de casa as 7h da manhã e volta as 8h da noite, não tendo muito tempo pra dedicar aos filhos.
“Ao ver as multidões, Jesus sentiu grande compaixão pelas pessoas, pois que estavam aflitas e desamparadas como ovelhas que não têm pastor.” Mateus 9:36
Letícia é outra adolescente nossa, tem 12 anos e uma situação familiar um tanto quanto complicada. Sua mãe tem 7 filhos, o pai das crianças não ajuda a criar esses filhos, e nem paga pensão. Ela mora no subsolo de um quintal e, certo dia, descendo as escadas pra casa escorregou, bateu a cabeça e desmaiou. A ambulância levou 2h para chegar. Desde então ela não pode andar longas distâncias sozinha, pois depois da queda ela ficou com dificuldades para falar e desmaia sempre. O medico do posto de saúde disse que ela não tem nada e não a encaminhou pro neurologista. Diante dessa situação ela não consegue trabalhar e sustenta a família vendendo produtos de limpeza e avon.. Letícia sente muito ciúmes dos irmãos, ela queria a mãe só pra ela. Ela é uma adolescente “rebelde. Não me entenda mal, mas as vezes Letícia não é uma menina de se lidar. Ela já foi expulsa da escola por ofender a professora e por vandalismo.
Um dia desses, Letícia estava aos tapas com outro adolescente, ela xingava muito e nós não conseguíamos separá-la. Uma funcionária que trabalha com a gente, vendo aquilo, segurou nela e a abraçou, foi quando ela se acalmou. Talvez o que ela mais precise seja um pouco de amor, atenção e de alguém que a entenda e dedique tempo de qualidade a ela.
“Ao ver as multidões, Jesus sentiu grande compaixão pelas pessoas, pois que estavam aflitas e desamparadas como ovelhas que não têm pastor.”
Jesus, ao ver as multidões, teve compaixão! Ele olhava além da criança difícil, da mãe que sai pra trabalhar e deixa a filho o dia inteiro aos cuidados de “outros”, da adolescente rebelde que quer a mãe só para si. Jesus tinha compaixão da multidão.
Cada vez que encontro com um Bruno, uma Giovanna ou uma Letícia, fico me perguntando o que nós, igreja, escolas, pais e mães temos feito por essas ovelhinhas. Ovelhinhas aflitas, perdidas, com dores na alma, perdidas sem um pastor? Onde está a nossa compaixão? Será que temos fechado o nosso ouvido para seus gritos pois tudo isso é complicado e não sabemos por onde começar? Será que temos silenciado o grito da alma deles com adjetivos taxativos, diagnósticos e remédios às vezes desnecessários, ou simplesmente fechado nossos ouvidos pra realidades que existe uma geração inteira de crianças que está desorientada, perdida como ovelha sem pastor? Honestamente eu não sei como resolver tudo isso, mas podemos começar simplesmente nos identificando com o Mestre.
Ame o adolescente difícil da sua vizinhança, ame a criança que não tem amigos, ame a sua vizinha que se sente envergonhada por ser a única mãe solteira vivendo ali. Puxe conversa, esteja disponível, pague um lanche, envie um bilhetinho com palavras de encorajamento.
Simplesmente pare por alguns segundos e olhe para a “multidão”. No momento que paramos e olhamos, provavelmente nosso coração se encherá de grande compaixão.
Juliana Wanderley